terça-feira, 24 de novembro de 2015

A-Divindade

A-Divindade
Um Ensaio de Como Criamos Nossos Deuses

Dentre a grande trajetória da evolução humana, dos australopithecos1, até nossa caminhada atual de Homo sapiens2. Nenhum feito pode ser tão grande, como medirmos a curiosidade através do medo inconsciente do que é desconhecido. Nossos ancestrais conseguiram encontrar um meio eficiente de divinizar esse medo, quando no fundo da caverna começaram a fazer sua "arte" rupestre.
A representação do bisão3, das mãos nas paredes feitas com sangue, lama ou carvão pedindo proteção, narrando uma história que trouxesse bons agouros, através dos triunfos representados nas caçadas junto ao raio e a tempestade despontando na planície da aurora de nossos antepassados, deixando um rastro magnífico de destruição e som. Mas também, trazendo a maravilha do fogo, que possibilitava uma carne mais tenra nos pobres animais de caça que não podiam se abrigar das intempéries. Assim, o homem primitivo, desprovido de razão e conhecimento técnico, acabara por representar através dessas imagens fantásticas, novas formas de perpetuar tanto seu tempo, quanto dominar a realidade que ainda não compreendia criando assim, linguagem.
Imagem também é linguagem.
Imagens em sequência são linguagem. O imagético é linguagem e os arquétipos são camadas da linguagem. São camadas invisíveis, que não estão lá, mas estão, são agentes da cultura e da contracultura. Essas camadas devem ser descontruídas, mas de forma evidente, não tão sugestiva. A realidade é sempre baseada na linguagem (MORRISON, 1999).
A linguagem é uma arte social. As palavras têm significado para nós, porque estamos acostumados com a maneira que elas são usadas pelos outros, não porque existe uma ligação entre palavras e coisas reais. O modo como à linguagem é usada socialmente à torna significativa. Existem expressões que só fazem sentido para um nicho. Permito até dizer que a imagem, e a representação na linguagem, foram as primeiras grandes divindades arquetípicas4 criadas pela humanidade, ou seja:
"Todos os deuses pedem por sacrifícios".
E os sacrifícios, devem nos recompensar de alguma forma.
Transformar a realidade em um fenômeno estético como os gregos antigos faziam, e como o filósofo Nietzsche descreveu tão claramente em seu livro “o nascimento da tragédia” (1872). Nos mostra como a necessidade de sobrevivência em um determinado grupo ou meio social, impulsiona formas de anular ou criar uma moral totalmente diferente do que seria ético nesses grupos.
Trazendo isso para a relação de criação de divindades, nos faz lembrar que em um determinado momento da história humana em seus primórdios, surge a figura do mágico, do santo, do pajé dentro da aldeia. E quem é essa figura nessa hierarquia? Certamente não é o guerreiro, que deve se preocupar com a segurança e o mantenimento, através da caça e do sustento desse grupo, nem da mulher, que deve se preocupar com a organização social e afazeres domésticos. Sobra assim, o individuo fraco, que por necessidade de sobreviver abraça o instinto mágico, o sobrenatural como forma de didática naquilo que os outros não compreendem. Assegurando assim, um lugar confortável nesse meio e garantindo a sua sobrevivência pelo respeito dos demais indivíduos no medo do desconhecido que este domina e manipula com a ajuda dos deuses.

Tempo -> Linguagem -> História ->
O que acontece com uma ideia, mito ou crença quando um grupo deixa de acreditar, ou a esquece com o passar do tempo?
Existe uma anedota antiga, se não trágica; que conta como os antigos gregos se deram conta de que a escrita trazida pelos fenícios5, com seus deuses, representações idênticas à sua etnia e bem diferente do panteão helênico, acabou por matar a deusa "Mnemosine6".
Antes da chegada desses guerreiros do norte da Palestina com sua cultura, o agricultor tinha que sempre prestar algum tipo de “libação7” para que a deusa em determinada época do ano o lembrasse através de sinais (mudanças climáticas), a melhor época para o plantio e para a colheita. Com a chegada dos rudimentos da escrita, o mesmo agricultor não dependia mais da Mnemosine (memória), ele poderia guardar as lembranças pela escrita, ou seja, a deusa já não tinha mais serventia prática e assim, "morreu".

O mito evolui?
Será que resinificamos divindades para que estas não sejam esquecidas?
Toth8 virou Hermes9; Mitra10 virou Apolo11, que virou krishna12, que virou Jesus; Zeus - Júpiter – Yahweh13 – Jeová14 - Deus; Orixás se transformando em Santos Cristãos.
Todos são nitidamente representações antropomórficas de ações estritamente humanas, emanam "conceitos". Como diria o filósofo Jacques Derrida no livro, Força de lei: o fundamento místico da autoridade de 1994, o significado nunca é tão direto quanto pensamos que é, e esse significado está sempre sujeito a ser descerrado pela desconstrução.

O que nos diviniza?
Criação de deuses = O poder do mito ou da imaginação = medo da finitude;
Sofrimento físico e emocional = Movimento (devir15) = Cosmogonia16 como arquétipo (todas as narrações da criação do universo ou do mundo são muito parecidas entre as diversas culturas conhecidas);
Crença = Dualidade: Falta de conhecimento racional x poder simbólico = maniqueísmo17 (Bem x Mal).
Quais são os próximos deuses a serem venerados? Ou será que já não são?
A devoção à tecnologia, à mídia, à publicidade e propaganda, ao capitalismo, as celebridades é visto quase como uma adoração litúrgica inconsciente. Na história em quadrinhos, Os invisíveis do escritor escocês Grant Morrison18, John Lennon, um dos integrantes da banda The Beatles19, é um Deus psicodélico que pode ser acessado através de meditação, LSD20 e discos antigos de rock'n'roll.

Conclusão
O que não nos damos conta, é que nós também somos deuses. Deuses compostos por três bilhões de bilhões, de bilhões de átomos que nos tornam únicos. E que, de acordo com a lei da conservação de energia newtoniana21; não pode ser destruída (matéria), apenas transformada em outra coisa. Como em um “eterno retorno22” nietzschiano, somos pó de estrela que acompanha o tempo do universo desde o seu início. Nascemos de uma grande explosão e morreremos em uma.

Vivemos e morremos tal qual “Brahma23” (o deus, não a cerveja), ao bater de seu tambor cria universos, e já na próxima batida os destrói sucessivamente. 
                                                                                            
                                                                         Por Dado Nascimento

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1- Constitui um género de diversos hominídeos extintos, bastante próximos aos do género Homo.
2- Do latim "homem sábio", e também chamado de pessoa, gente ou homem, é a única espécie animal de primata bípede do gênero Homo ainda viva.
3- Herbívoro mais comum do continente norte-americano há mais de 10.000 anos, e é um ancestral direto do bisão americano vivo.
4- Referente a arquétipo: primeiro modelo ou imagem de alguma coisa, antigas impressões sobre algo. É um conceito explorado em diversos campos de estudo, como a Filosofia, Psicologia.
5- Civilização da Antiguidade cujo epicentro se localizava no norte da antiga Canaã, ao longo das regiões litorâneas dos atuais Líbano, Síria e norte de Israel.
6- Uma das titânides, filha de Urano e Gaia e a deusa que personificava a Memória.
7- Ato que consiste na aspersão de um líquido em intenção de uma divindade.
8- Deus egípcio, representado com cabeça de íbis; é o deus do conhecimento, da sabedoria, da música e da magia.
9- Um dos deuses olímpicos, filho de Zeus e de Maia, e possuidor de vários atributos. Divindade muito antiga, já era cultuado na história pré-Grécia antiga possivelmente como um deus da fertilidade, dos rebanhos, da magia, da divinação, das estradas e viagens, entre outros atributos. Ao longo dos séculos seu mito foi extensamente ampliado, tornando-se o mensageiro dos deuses e patrono da ginástica, dos ladrões, dos diplomatas, dos comerciantes, da astronomia, da eloquência e de algumas formas de iniciação, além de ser o guia das almas dos mortos para o reino de Hades, apenas para citar-se algumas de suas funções mais conhecidas.
10- É o deus do Sol, da sabedoria e da guerra na mitologia persa.
11- Foi uma das divindades principais da mitologia greco-romana, um dos deuses olímpicos. Filho de Zeus e Leto, e irmão gêmeo de Ártemis, possuía muitos atributos e funções, e possivelmente depois de Zeus foi o deus mais influente e venerado entre todos da Antiguidade clássica.
12- No hinduísmo, foi um avatar ou manifestação de Vishnu, o aspecto original da divindade. Segundo o Bhagavata Purana, é a Suprema Personalidade de Deus, e é assim cultuado pelos Hare Krishnas É uma das divindades mais cultuadas em toda a Índia, possivelmente por ser o interlocutor de Arjuna no Bhagavad-Gitā.
13- O Tetragrama Sagrado YHVH ou YHWH refere-se ao nome do Deus de Israel em forma escrita já transliterada e, pois, latinizada, como de uso corrente na maioria das culturas atuais.
14- No Antigo Testamento, denominação de Deus; Iavé, Javé.
15- Conceito Filosófico que significa as mudanças pelas quais passam as coisas. O conceito de "se tornar" nasceu no leste da Grécia antiga pelo filósofo Heráclito de Éfeso que no século VI a.C., disse que nada neste mundo é permanente, exceto a mudança e a transformação. Fluxo permanente, movimento ininterrupto, atuante como uma lei geral do universo, que dissolve, cria e transforma todas as realidades existentes; devenir, vir a ser.
16- Corpo de doutrinas, princípios (religiosos, míticos ou científicos) que se ocupam em explicar a origem, o princípio do universo; cosmogênese.
17- Qualquer visão do mundo que se divide em poderes opostos e incompatíveis.
18- É um escritor de histórias em quadrinhos conhecido por seu experimentalismo e pela utilização das mais diversas referências culturais e contra-culturais em suas criações.
19- Banda de rock britânica, formada em Liverpool em 1960. É o grupo musical mais bem-sucedido e aclamado da história da música popular.
20- Palavra alemã para a dietilamida do ácido lisérgico, que é uma das mais potentes substâncias alucinógenas conhecidas.
21- Na física, estabelece que a quantidade total de energia em um sistema isolado permanece constante. Tal princípio está intimamente ligado com a própria definição da energia.
22- Conceito filosófico formulado por Friedrich Nietzsche. Um dos aspectos do Eterno Retorno diz respeito aos ciclos repetitivos da vida: estamos sempre presos a um número limitado de fatos, fatos estes que se repetiram no passado, ocorrem no presente e se repetirão no futuro, como por exemplo, guerras, epidemias, etc.
23- É o primeiro deus da Trimúrti, a trindade do hinduísmo (os outros deuses são Vishnu e Shiva). Brama é considerado, pelos hindus, a representação da força criadora ativa no universo.



Bibliografia

DERRIDA, Jacques. Força de lei – “O fundamento místico da autoridade”. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

Morrison, Grant.  The Invisibles_Volume 2. “Counting to None” - Vertigo – Panini, February 1997 - February 1999.


Nietzsche, Friedrich. “O Nascimento da Tragédia” - Ed. De Bolso, Brasil: Companhia Das Letras, 2007.


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