A-Divindade
Um Ensaio de Como Criamos Nossos Deuses
Dentre a grande trajetória da evolução humana, dos australopithecos1, até nossa
caminhada atual de Homo sapiens2.
Nenhum feito pode ser tão grande, como medirmos a curiosidade através do medo
inconsciente do que é desconhecido. Nossos ancestrais conseguiram encontrar um
meio eficiente de divinizar esse medo, quando no fundo da caverna começaram a
fazer sua "arte" rupestre.
A representação do bisão3, das mãos nas paredes
feitas com sangue, lama ou carvão pedindo proteção, narrando uma história que trouxesse
bons agouros, através dos triunfos representados nas caçadas junto ao raio e a
tempestade despontando na planície da aurora de nossos antepassados, deixando
um rastro magnífico de destruição e som. Mas também, trazendo a maravilha do
fogo, que possibilitava uma carne mais tenra nos pobres animais de caça que não
podiam se abrigar das intempéries. Assim, o homem primitivo, desprovido de
razão e conhecimento técnico, acabara por representar através dessas imagens
fantásticas, novas formas de perpetuar tanto seu tempo, quanto dominar a
realidade que ainda não compreendia criando assim, linguagem.
Imagem também é linguagem.
Imagens em sequência são linguagem. O imagético é linguagem e
os arquétipos são camadas da linguagem. São camadas invisíveis, que não estão
lá, mas estão, são agentes da cultura e da contracultura. Essas camadas devem
ser descontruídas, mas de forma evidente, não tão sugestiva. A realidade é sempre
baseada na linguagem (MORRISON, 1999).
A linguagem é uma arte social. As palavras têm significado
para nós, porque estamos acostumados com a maneira que elas são usadas pelos
outros, não porque existe uma ligação entre palavras e coisas reais. O modo
como à linguagem é usada socialmente à torna significativa. Existem expressões
que só fazem sentido para um nicho. Permito até dizer que a imagem, e a
representação na linguagem, foram as primeiras grandes divindades arquetípicas4
criadas pela humanidade, ou seja:
"Todos
os deuses pedem por sacrifícios".
E os
sacrifícios, devem nos recompensar de alguma forma.
Transformar a realidade em um fenômeno estético como os
gregos antigos faziam, e como o filósofo Nietzsche descreveu tão claramente em
seu livro “o nascimento da tragédia” (1872). Nos mostra como a necessidade de
sobrevivência em um determinado grupo ou meio social, impulsiona formas de
anular ou criar uma moral totalmente diferente do que seria ético nesses
grupos.
Trazendo isso para a relação de criação de divindades, nos
faz lembrar que em um determinado momento da história humana em seus primórdios,
surge a figura do mágico, do santo, do pajé dentro da aldeia. E quem é essa
figura nessa hierarquia? Certamente não é o guerreiro, que deve se preocupar
com a segurança e o mantenimento, através da caça e do sustento desse grupo, nem
da mulher, que deve se preocupar com a organização social e afazeres
domésticos. Sobra assim, o individuo fraco, que por necessidade de sobreviver
abraça o instinto mágico, o sobrenatural como forma de didática naquilo que os
outros não compreendem. Assegurando assim, um lugar confortável nesse meio e
garantindo a sua sobrevivência pelo respeito dos demais indivíduos no medo do
desconhecido que este domina e manipula com a ajuda dos deuses.
Tempo -> Linguagem -> História
->
O que acontece com uma ideia, mito ou crença quando um grupo
deixa de acreditar, ou a esquece com o passar do tempo?
Existe uma anedota antiga, se não trágica; que conta como os antigos
gregos se deram conta de que a escrita trazida pelos fenícios5, com seus deuses, representações idênticas à
sua etnia e bem diferente do panteão helênico, acabou por matar a deusa "Mnemosine6".
Antes da chegada desses guerreiros do norte da Palestina com
sua cultura, o agricultor tinha que sempre prestar algum tipo de “libação7”
para que a deusa em determinada época do ano o lembrasse através de sinais
(mudanças climáticas), a melhor época para o plantio e para a colheita. Com a
chegada dos rudimentos da escrita, o mesmo agricultor não dependia mais da Mnemosine (memória), ele poderia guardar
as lembranças pela escrita, ou seja, a deusa já não tinha mais serventia
prática e assim, "morreu".
O mito evolui?
Será que resinificamos divindades para que estas não sejam
esquecidas?
Toth8 virou Hermes9;
Mitra10 virou Apolo11, que virou krishna12, que virou Jesus; Zeus
- Júpiter – Yahweh13 – Jeová14
- Deus; Orixás se transformando em Santos Cristãos.
Todos são nitidamente representações antropomórficas de ações
estritamente humanas, emanam "conceitos". Como diria o filósofo
Jacques Derrida no livro, Força de lei: o
fundamento místico da autoridade de 1994, o significado nunca é tão direto
quanto pensamos que é, e esse significado está sempre sujeito a ser descerrado
pela desconstrução.
O que nos diviniza?
Criação de deuses = O poder do mito ou da imaginação = medo
da finitude;
Sofrimento físico e emocional = Movimento (devir15) = Cosmogonia16
como arquétipo (todas as narrações da criação do universo ou do mundo são muito
parecidas entre as diversas culturas conhecidas);
Crença = Dualidade: Falta de conhecimento racional x poder
simbólico = maniqueísmo17 (Bem x Mal).
Quais são os próximos deuses a serem venerados? Ou será que
já não são?
A devoção à tecnologia, à mídia, à publicidade e propaganda,
ao capitalismo, as celebridades é visto quase como uma adoração litúrgica
inconsciente. Na história em quadrinhos, Os invisíveis do escritor escocês Grant
Morrison18, John Lennon, um dos integrantes da banda The Beatles19, é um Deus psicodélico
que pode ser acessado através de meditação, LSD20
e discos antigos de rock'n'roll.
Conclusão
O que não nos damos conta, é que nós também somos deuses.
Deuses compostos por três bilhões de bilhões, de bilhões de átomos que nos
tornam únicos. E que, de acordo com a lei da conservação de energia newtoniana21; não pode ser
destruída (matéria), apenas transformada em outra coisa. Como em um “eterno
retorno22” nietzschiano,
somos pó de estrela que acompanha o tempo do universo desde o seu início. Nascemos
de uma grande explosão e morreremos em uma.
Vivemos e morremos tal qual “Brahma23” (o deus, não a cerveja), ao bater de seu
tambor cria universos, e já na próxima batida os destrói sucessivamente.
Por Dado Nascimento
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1- Constitui um género de diversos hominídeos extintos,
bastante próximos aos do género Homo.
2- Do latim
"homem sábio", e também chamado de pessoa, gente ou homem, é a única
espécie animal de primata bípede do
gênero Homo ainda viva.
3- Herbívoro mais
comum do continente norte-americano há mais de 10.000 anos, e é um ancestral
direto do bisão americano vivo.
4- Referente a
arquétipo: primeiro modelo ou imagem de alguma coisa, antigas impressões sobre
algo. É um conceito explorado em diversos campos de estudo, como a Filosofia,
Psicologia.
5- Civilização da
Antiguidade cujo epicentro se localizava no norte da antiga Canaã, ao longo das
regiões litorâneas dos atuais Líbano, Síria e norte de Israel.
6- Uma das
titânides, filha de Urano e Gaia e a deusa que personificava a Memória.
7- Ato que consiste
na aspersão de um líquido em intenção de uma divindade.
8- Deus egípcio,
representado com cabeça de íbis; é o deus do conhecimento, da sabedoria, da
música e da magia.
9- Um dos deuses
olímpicos, filho de Zeus e de Maia, e possuidor de vários atributos. Divindade
muito antiga, já era cultuado na história pré-Grécia antiga possivelmente como
um deus da fertilidade, dos rebanhos, da magia, da divinação, das estradas e
viagens, entre outros atributos. Ao longo dos séculos seu mito foi extensamente
ampliado, tornando-se o mensageiro dos deuses e patrono da ginástica, dos
ladrões, dos diplomatas, dos comerciantes, da astronomia, da eloquência e de
algumas formas de iniciação, além de ser o guia das almas dos mortos para o
reino de Hades, apenas para citar-se algumas de suas funções mais conhecidas.
10- É o deus do Sol,
da sabedoria e da guerra na mitologia persa.
11- Foi uma das
divindades principais da mitologia greco-romana, um dos deuses olímpicos. Filho
de Zeus e Leto, e irmão gêmeo de Ártemis, possuía muitos atributos e funções, e
possivelmente depois de Zeus foi o deus mais influente e venerado entre todos
da Antiguidade clássica.
12- No hinduísmo,
foi um avatar ou manifestação de Vishnu, o aspecto original da divindade. Segundo
o Bhagavata Purana, é a Suprema Personalidade de Deus, e é assim cultuado pelos
Hare Krishnas É uma das divindades mais cultuadas em toda a Índia,
possivelmente por ser o interlocutor de Arjuna no Bhagavad-Gitā.
13- O Tetragrama
Sagrado YHVH ou YHWH refere-se ao nome do Deus de Israel em forma escrita já
transliterada e, pois, latinizada, como de uso corrente na maioria das culturas
atuais.
14- No Antigo
Testamento, denominação de Deus; Iavé, Javé.
15- Conceito
Filosófico que significa as mudanças pelas quais passam as coisas. O conceito
de "se tornar" nasceu no leste da Grécia antiga pelo filósofo
Heráclito de Éfeso que no século VI a.C., disse que nada neste mundo é
permanente, exceto a mudança e a transformação. Fluxo permanente, movimento
ininterrupto, atuante como uma lei geral do universo, que dissolve, cria e
transforma todas as realidades existentes; devenir, vir a ser.
16- Corpo de
doutrinas, princípios (religiosos, míticos ou científicos) que se ocupam em
explicar a origem, o princípio do universo; cosmogênese.
17- Qualquer visão
do mundo que se divide em poderes opostos e incompatíveis.
18- É um escritor de
histórias em quadrinhos conhecido por seu experimentalismo e pela utilização
das mais diversas referências culturais e contra-culturais em suas criações.
19- Banda de rock
britânica, formada em Liverpool em 1960. É o grupo musical mais bem-sucedido e
aclamado da história da música popular.
20- Palavra alemã
para a dietilamida do ácido lisérgico, que é uma das mais potentes substâncias
alucinógenas conhecidas.
21- Na física, estabelece
que a quantidade total de energia em um sistema isolado permanece constante.
Tal princípio está intimamente ligado com a própria definição da energia.
22- Conceito
filosófico formulado por Friedrich Nietzsche. Um dos aspectos do Eterno Retorno
diz respeito aos ciclos repetitivos da vida: estamos sempre presos a um número
limitado de fatos, fatos estes que se repetiram no passado, ocorrem no presente
e se repetirão no futuro, como por exemplo, guerras, epidemias, etc.
23- É o primeiro
deus da Trimúrti, a trindade do hinduísmo (os outros deuses são Vishnu e
Shiva). Brama é considerado, pelos hindus, a representação da força criadora
ativa no universo.
Bibliografia
DERRIDA, Jacques. Força
de lei – “O fundamento místico da autoridade”. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
Morrison, Grant. The Invisibles_Volume 2. “Counting to None” -
Vertigo – Panini, February 1997 - February 1999.
Nietzsche, Friedrich. “O Nascimento da Tragédia” - Ed. De
Bolso, Brasil: Companhia Das Letras, 2007.
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